Lisbela e o prisioneiro, de Osman Lins, foi publicada em 1963 pela Edição da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em tiragem limitada e de alcance restrito, resgatando um universo da cultura popular e, apesar desse caráter nacional-popular, não se limita a questões do tempo em que foi escrita. A época pode explicar a gênese, mas não dá conta da estrutura que, nesse caso, vai além dela ou seja, é uma peça de origem rural mas que permite leituras urbanas, tendo uma perspectiva popular recriando situações que se encaixam em qualquer região e tempo representada em situações divertidas por meio da linguagem. É uma comédia de caracteres, embora as ações desenvolvidas na cadeia de Vitória de Santo Antão desempenhem uma função considerável na sua estrutura tradicional, com exposição, desenvolvimento, falso clímax, clímax, desfecho de situações, vivenciadas por personagens nordestinas e muito bem amarradas.
Lisbela, filha do Tenente Guedes, delegado da Cadeia de Santo Antão, forma par amoroso com o funâmbulo Leléu, um Don Juan nordestino. Esse casal anticonvencional assume riscos em nome de sentimentos intensos. Lisbela foge com Leléu, no dia de seu casamento com Dr. Noêmio, advogado vegetariano, por isso mesmo personagem destoante do meio em que se encontra, prestando-se a alvo de muitas tiradas cômicas. Ao marido, doutor, representante do estabelecido e da segurança, a jovem prefere Leléu, o artista de circo preso, com tudo o que este significa de risco e subversão dos valores vigentes em seu meio.
A peça é dominada pela presença de personagens masculinas. Além das já referidas, atuam na cadeia de Vitória de Santo Antão, Jaborandi, soldado e corneteiro, afeiçoado a fitas em série; Testa-Seca e Paraíba, outros presos; Juvenal, outro soldado; Heliodoro, cabo de destacamento, casado, já com uma certa idade, apaixonado por uma jovem, o qual chega a forjar um falso casamento para possui-la; Tãozinho, vendedor ambulante de pássaros, que rouba a mulher de Raimundinho; Frederico, assassino profissional, à procura de Leléu, que deflorou sua irmã Inaura,e que por ele é salvo, sem saber, de um ataque de boi; Lapiau, artista de circo, amigo de Leléu, que participa da farsa de casamento de Heliodoro com a jovem; Citonho, o velho carcereiro, esperto e dinâmico, cúmplice, no final, de Lisbela e de Leléu e mais dois soldados, personagens mudas.
Lisbela, a única filha do tenente Guedes, é também a única mulher que atua em cena; as outras são apenas mencionadas nos diálogos. E atua com força, porque enfrenta a autoridade patriarcal, representada pelo pai e pelo noivo, ao tomar iniciativa para colaborar com a fuga de Leléu da prisão e a se dispor a abandonar o marido no dia de seu casamento para aventurar-se na vida com o equilibrista. Como se não bastasse isso, é ela quem livra Leléu da morte, ao atirar, aparentemente, em Frederico, o assassino profissional, quando este lhe apontava a arma, pouco antes do desfecho da peça. Parece e julga-se tornar-se uma criminosa, colocando o pai numa situação incômoda. Para livrar a própria filha da cadeia, este usará expedientes comprometedores para a lisura de uma autoridade, com o fito de embaralhar ou ocultar a autoria do suposto crime, pois no desfecho da peça revela-se que Frederico morreu de morte natural. Por suas ações, Lisbela não apenas renega os mesquinhos valores, mas também expõe as fraturas da sociedade patriarcal.
O gênero comédia aliado ao perfil anticonvencional da dupla protagonista foi muito bem escolhido por Osman Lins para pôr em cena, no contexto de uma região de valentias, de sentimentos exaltados, de honra e vinganças, um crime inesperado, porque aparentemente cometido pela jovem Lisbela. Inesperado, mas plenamente justificado, se tivesse ocorrido.
Atitudes que causam surpresa também compõem Leléu, que nada tem de prisioneiro em termos dos valores estabelecidos, garantidores de acomodada segurança, mas negadores da “flama da vida”. Volúvel nos amores, experimentador de várias profissões, portador de diferentes identidades, afeiçoado a riscos e deslocamentos, o circence Leléu, que tanto quer e tanto faz para sair das grades da cadeia de Vitória de Santo Antão, não hesita a ela retornar, só para ficar próximo de Lisbela, quando fracassa o plano de fuga dos dois. O paradoxal retorno à prisão é mais um movimento desta personagem para a libertação das amarras de valores que lhe são menores do que os impulsos da vida. Ele vive sempre com fervor seu minuto de aflição ou de alegria, como bem acentuou o próprio Osman Lins, ao apontar para o efeito contaminador de sua ”flama”, no programa da primeira temporada desta comédia: Leléu acende, mesmo na cadeia, as apagadas chamas de Lisbela e desperta em Citonho, o velho carcereiro, o herói escondido.
Aliás, essa personagem é uma daquelas que mais se destacam na peça e atraem a atenção e a conivência do leitor, porque de velho caduco e fraco, propício a gozações dos mais jovens e fortes, ele não tem nada. Com maestria, Osman Lins desvela na personagem octogenária, enfraquecida, em tese, pela faixa etária e pela categoria da função exercida, a mais desqualificada do contexto da peça, sua perspicácia, lucidez, força e coragem. O velho solitário considerado caduco pelo tenente Guedes é o que, de todos os seus submissos, mais o enfrenta: toma partido de Lisbela e de Leléu, em prol do amor libertário, com todos os seus riscos, e age com esperteza para proteger a jovem da suposta autoria de seu crime. Enfim, do velho também emanam vida e movimento.
Essa poética do avesso contribui ainda para relativizar o lado antipático do tenente Guedes, representante da polícia. Apesar de suas atitudes condenáveis, como os desmandos, a prepotência, a conivência com o crime, o delegado mostra-se humano quase todo o tempo. Por causa de sua função, não consegue se desvencilhar do “encarceramento profissional” e se vê obrigado a tomar atitudes contrárias a seu temperamento. Eis um dos motivos pelos quais está sempre a afirmar que “a autoridade é um fardo”. Bordão com efeitos cômicos, de acordo com as situações nas quais é proferida. No fundo, o tenente Guedes é mais prisioneiro de sua profissão que todos seus subalternos.
Dentre estes, merece menção especial o soldado e corneteiro, Jaborandi, que vive fugindo do local de trabalho, para assistir fitas em série no cinematógrafo, interrompendo seus momentos de fantasia, na hora que tem de tocar a corneta. Em meio a idas e vindas, ele vive entre o sonho e a realidade, mas uma realidade na qual sua função, tocar corneta, é desprovida de sentido conseqüente, a não ser o de acentuar a sua falta de sentido naquele contexto: para quê tocar corneta numa prisão? No mínimo, tais cenas provocam o riso, cumprindo sua função na comédia, e abrem brechas para o próprio Jaborandi e outras personagens estabelecerem ligação entre as estruturas das fitas em série (filmes de bandido e mocinho) e os episódios da comédia, além de interiorizarem na própria peça alusões às relações entre a vida e a fantasia.
Por mais despretensioso que tenha sido Osman Lins na composição simples e direta desta comédia, quando se encontrava ainda na fase da busca de caminhos próprios para sua ficção e para seu teatro, como ele próprio afirmou em entrevista concedida em 1961, o fato é que Lisbela e o prisioneiro é uma peça de um autor seguro, engenhoso e talentoso, que tem muito ainda a dizer em nossos dias, desde o que se refere aos desmandos e à conivência da polícia com o crime até questões de ordem existencial.
O regionalismo de Lisbela e o prisioneiro, fundado no aproveitamento de incidentes testemunhados por amigos, por familiares e por Osman Lins bem como apoiado na transposição de ditados, expressões populares e dísticos encontrados em pára-choques de caminhões, é transfigurado sob a pena de seu autor. Matéria e linguagem re-elaboradas tecem esta peça, regada por uma equilibrada dosagem de leveza, comicidade e ternura, e assentada em valores libertários em prol da vida, o que lhe abre as portas para outros tempos e outros espaços.
Duas linguagens: Teatro e cinema
Para analisar aspectos da adaptação do livro ao filme, é necessário considerar que o cinema mais que um suporte, é uma nova linguagem, infinitamente diferente
da linguagem verbal, ou seja, entraremos em dois campos, com significados múltiplos porém de diálogo permanente. A adaptação de um livro pode recriar na tela significados tão expressivos quanto os que se encontram no texto original, com a utilização de diferentes recursos narrativos e estilísticos.
Um desses recursos chamado de cutback e muito conhecido como flashback exemplifica a questão acima utilizado em uma das cenas do filme Lisbela e o prisioneiro.
No jargão cinematográfico, qualquer volta a uma cena passada é chamada de cutback e admite inúmeras variações, podendo servir a muitos propósitos e na cena
que iremos demonstrar a intenção é evocar a memória. No teatro a memória atua na mente do espectador, evocando coisas que dão sentido pleno e situam melhor cada cena, cada palavra e cada movimento. A cada momento precisamos lembrar o que aconteceu nas cenas anteriores, ou seja o teatro não tem outro recurso senão sugerir à memória tal retrospecto, já o cinema pode ir além projetando a imaginação na tela.
Segundo o teórico Ismail Xavier (2003, p. 38) “é como se a realidade fosse despojada da própria relação de continuidade para atender às exigências do espírito e o próprio mundo exterior se amoldasse às inconstâncias das idéias que vem á memória”.
O teatro só pode mostrar os acontecimentos reais em sua seqüência normal; o cinema pode fazer a ponte para o futuro ou para o passado, inserindo entre um minuto e o próximo, um acontecimento de 20 anos passados. Assim, o cinema pode agir de forma análoga à imaginação: ele possui a mobilidade das idéias, que não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos externos, mas sim ás leis psicológicas da associação de idéias. Dentro da mente o passado e o futuro se entrelaçam com o presente. O cinema ao invés de obedecer às leis do mundo exterior obedece as da mente.
Mas o papel da memória e da imaginação na arte do cinema pode ser ainda mais rico e significativo. A tela pode refletir não apenas o produto de nossas lembranças ou da nossa imaginação mas também à própria mente dos personagens. A técnica cinematográfica introduziu com sucesso uma forma especial para esse tipo de visualização. Se um personagem recorda o passado – um passado que pode ser inteiramente desconhecido do espectador, mas que está vivo na memória do herói – os acontecimentos surgem na tela com um conjunto novo de cenas, mas ligam-se à cena presente mediante uma lenta transição. Essa técnica da produção dessas transições graduais de uma imagem para outra e do retorno á imagem inicial abre naturalmente amplas perspectivas; o roteirista pode usar as imagens retrospectivas para visualizar cenas e complicados acontecimentos do passado.
Embora trabalhoso método, obteve plena aceitação no meio cinematográfico pois, de alguma forma, o efeito realmente “simboliza” o aparecimento e o desaparecimento de uma reminiscência. Nitidamente observa-se o resultado desses efeitos na cena em que o personagem Leléu explica a mocinha Lisbela o porquê de ser tão livre, revivendo a história de sua infância no interior de Pernambuco – São José da Coroa Grande – e um Zepelim que por lá havia passado.
Observa-se o curso natural dos acontecimentos, mudado pelo poder da mente através do relato do personagem Leléu, em que o teatro oferece aos nossos ouvidos a simples menção de lugares e acontecimentos, que se tornam nomes mortos em nossa imaginação enquanto que o cinema pode oferecer aos nossos olhos panoramas deslumbrantes mostrando-nos em cena a fantasia viva do jovem.
O que é poético no texto dramático torna-se ainda mais poético com a projeção da imagem, proporcionando ao espectador o efeito das lembranças de infância e fantasias, vivenciadas por Leléu. Essa técnica da produção gradual de uma imagem para outra e do retorno à imagem inicial, exige muita precisão e é mais difícil do que uma mudança brusca de cena pois é necessário combinar dois conjuntos de imagens exatamente correspondentes, para que o efeito realmente simbolize o aparecimento e o desaparecimento de uma reminiscência.